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Capítulo 8 – O sentido da vida
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1 –
- “Ha ha ha... essa menina Maysa é realmente uma criança muita esperta!”
Cena aberta horizontal, na tela da TV o palco do programa Sílvio Santos.
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1 –
Close no rosto de uma velha, que usa óculos e a TV reflete.
2 –
Close no rosto de um velho, que usa óculos e a TV reflete.
3 –
Close no rosto de um homem excepcional.
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1 –
Cena de um relógio na parede marcando 18h12.
2 –
Close nas mãos da velha tricoteando.
3 –
Cena de vários porta-retratos sobre um móvel, com as imagens de um prêmio que o velho ganhou como melhor Metre, outra da família na praia e na fazenda.
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1 –
Cena de retratos na parede da sala, com as imagens de mais dois filhos do casal, dos netinhos e de amigos.
2 –
Cena de retratos na parede do corredor do apartamento, com imagens do velho na cozinha e com mais premiações, da velha na máquina de datilografar e do excepcional com material escolar.
3 –
Cena de dois porta-retratos em cima de um criado-mudo, com imagens dos outros dois filhos. Um deles tem a data de nascimento e de morte.
4 –
Cena de porta-retratos na cozinha, com imagens do pai e mãe com os três filhos, do excepcional dentro de um carrinho de empurrar e com uma bola de futebol.
5 –
Cena de retratos no banheiro, com imagens dos velhos ainda jovens.
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1 –
Cena aberta horizontal, na sequência, os braços do excepcional estão cruzados, as mãos do velho estão em “oração” e da velha continua tricoteando.
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Pág. 2
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1 –
(10...)
- Mãe vou ao banheiro, xixi!
Cena do excepcional se levantando do sofá.
2 –
- “Tô louco, meu!”
Cena do Domingão do Faustão na TV.
3 –
- Vai lá meu filho, se precisar chama a mamãe...
Cena da velha tricoteando.
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1 –
(9...)
- Não precisa, você sabe.
Cena do excepcional na porta do banheiro.
2 –
- “Começa o Domingo Espetacular...”
Close na mão do velho segurando o controle remoto.
3 –
- Eu sei, às vezes a mamãe esquece que você já é grandinho...
Close nas mãos da velha tricoteando.
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1 –
(8...)
Cena do excepcional se olhando, assustado, no espelho.
2 –
- Pois bem, hoje é um ótimo dia...
Cena da velha tricoteando.
3 –
- Domingo é o melhor dia!
Cena do velho com os olhos arregalados.
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1 –
- Já vi o final da novela esta semana, pra mim está tudo ok...
Cena da velha tricoteando.
2 –
(7...)
Cena do excepcional no banheiro de cabeça baixa.
3 –
- Vamos falar com o Marquinhos?
Cena da velha abaixando o tricô e olhando para o velho.
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Pág. 3
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1 –
(6...)
Cena do excepcional no banheiro se olhando no espelho e chorando.
2 –
- Já discutimos muito sobre isso...
Cena do velho fazendo cara feia.
3 –
(5...)
Cena do excepcional no banheiro sentado no vaso sanitário como se estivesse pensando.
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1 –
- Eu sei... mas me dói o coração...
Cena da velha colocando a mão no peito.
2 –
(4...)
Cena do excepcional enxugando as lágrimas.
3 –
- Pode parar, não vamos retomar essa discussão!
Cena do velho fazendo um gesto negativo.
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1 –
Cena da velha choramingando.
2 –
(3...)
Cena do excepcional dando descarga.
3 –
- Tá vendo, você já está chorando, para que ele está voltando!
Cena do velho cruzando os braços.
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1 –
(2...)
Cena do excepcional lavando as mãos.
2 –
- Você sabe que eu me derreto...
Cena da velha tricoteando.
3 –
(1...)
Cena do excepcional voltando pelo corredor.
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1 –
- Lembre-se de quando você tinha 17 anos e não tinha medo de viver a liberdade...
Cena do velho falando, em volta a imagem dos dois com cabelos grandes, em cima de uma motoca.
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Pág. 4
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1 –
- Filho, hoje vamos comer a coisa mais deliciosa do mundo!
Cena de velha abrindo os braços para o excepcional.
2 –
- O quê?
Close no rosto do excepcional.
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1 –
- “Triiiiiiiimmm!”
- Pizza!
Cena aberta da sala com a campainha soando.
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Pág. 5
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1 –
- Quatro queijos, califórnia, calabresa, todas que você gosta!
Close numa pizza dentro da caixa.
2 –
- Mãe, não quero pizza.
Cena do excepcional fazendo uma negativa.
3 –
Cena do velho olhando desconfiado para a velha.
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1 –
- Por que filhinho? É o que você mais gosta de comer?
Cena da velha questionando, enquanto corta a pizza.
2 –
- Não quero pizza nunca mais.
Cena do excepcional cruzando os braços.
3 –
- O que foi meu filho aconteceu alguma coisa?
Cena do pai colocado as mãos nas costas do excepcional.
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1 –
- Enjoei de pizza!
Cena do excepcional fazendo careta.
2 –
- Então você já pode comer a sobremesa!
Close numa torta holandesa completa.
3 –
- Não, mãe, não quero torta!
Cena do excepcional com os braços cruzados.
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1 –
- Então o que você quer comer?
- Bacalhau gratinado com batatas, água com gás e um pouquinho de vinho do Porto.
Cena aberta horizontal da velha e do velho se olhando, e o excepcional com o braço levantado.
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Pág. 6
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1 –
- Filho, de onde você tirou essa ideia?
Cena da velha fechando a sobrancelha.
2 –
- Eu me lembrei, mamãe...
Close no rosto do excepcional.
3 –
- Como assim se lembrou?
Cena do pai acertando os óculos.
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1 –
- Lembrei-me da gente sentado naquela mesa grande, perto do mar, junto com a Naninha.
Cena aberta de um restaurante na orla marítima.
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1 –
- Sim! Quando fomos a Portugal!
Cena da velha sorrindo e levantando os braços.
2 –
- Exato! Que viagem aquela!
Cena do velho colocando a mão no peito.
3 –
- Eu quero bacalhau!
Cena do excepcional batendo com os punhos.
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1 –
- Eu vou pegar o catálogo...
Cena aberta da velha indo em direção ao telefone fixo.
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Pág. 7
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1 –
- Quem bom, filho, você ter se lembrado daquela viagem, eu mesmo havia me esquecido...
Close no rosto do velho.
2 –
(Eu me lembro de várias coisas...)
Cena do excepcional imóvel olhando para frente.
3 –
- Certo... por pessoa, quanto é? Tá bom!
Cena da velha falando ao telefone.
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1 –
(1994)
(Daquele cantor branco, do olho roxo e arregalado. Eu tinha medo dele. Fiquei trancado lá na Der Temple aquele dia...)
Cena do excepcional junto com um loiro, cabeludo, que injetava cocaína. Vários músicos da cena underground em volta.
2 –
(1976)
(Daquela menina que se casou com o jogador de futebol. Ela brincava comigo...)
Cena de uma loira peituda, deitando a cabeça do excepcional contra os peitos.
3 –
(1969)
(Daquele velho que me enganava na oficina toda vez...)
Cena de um velho enrabando o excepcional, enquanto ele brincava com um piano.
4 –
(1995)
(Daqueles caras que faziam muito barulho dentro do estúdio...)
Cena do excepcional agachado no ensaio de uma banda crust-punk.
5 –
(2001)
(Daquele acidente com o cara que falava enrolado...)
Cena do excepcional atrás da faixa amarela vendo um apartamento pegando fogo.
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Pág. 8
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1 –
- Chegou! Vamos comer, oba!
Cena da mãe levando o pacote para a cozinha.
2 –
- Mãe, traz aqui esse bacalhau!
Cena do excepcional deixando o refrigerante na mesa e correndo para cozinha.
3 –
- Que isso, filho! A mamãe só vai esquentar um pouquinho...
Cena da velha abrindo o embrulho.
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1 –
- Não precisa, fica quente, queima a língua...
Cena do excepcional pegando o embrulho.
2 –
- Filho, senta lá na mesa, só vou esquentar um pouquinho...
Cena da velha fazendo cara de piedade.
3 –
- Não precisa, quero assim, me dá!
Cena do excepcional tomando o embrulho.
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1 –
Cena aberta horizontal do velho colocando um pó dentro do refrigerante.
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1 –
- Tudo bem, Marco Túlio, a mamãe vai te servir a comida assim...
Cena da velha indo para a sala de jantar de cabeça baixa.
2 –
- Vocês viram o que aconteceu aqui na Augusta a noite passada?
Cena do velho mexendo no controle remoto perto da televisão.
3 –
Cena do excepcional alegre comendo o bacalhau.
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Pág. 9
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1 –
- Eu vi, aonde vamos parar com essa violência...
Cena da velha na mesa comendo a pizza.
2 –
Cena do excepcional tomando o refrigerante.
3 –
- Uma hora isso chega dentro das nossas casas...
Cena do velho voltando para a mesa.
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1 –
Cena do excepcional comendo o bacalhau.
2 –
- É disso que eu morro de medo.
Cena da velha comendo a pizza.
3 –
Cena do velho comendo a pizza.
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1 –
- Hum, mãe, tá gostoso!
Cena do excepcional comendo feliz.
2 –
Close nos restos da pizza da velha.
3 –
Close nos restos da pizza do velho.
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1 –
Cena aberta horizontal o excepcional tomando o refrigerante feito louco, os velhos meio sonolentos na mesa.
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Pág. 10
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1 –
Cena aberta horizontal dos velhos deitados no sofá desengonçados e babando, o excepcional está em pé com a mão na barriga e a cabeça baixa.
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1 –
Cena do excepcional enfiando o dedo na garganta.
2 –
Cena do excepcional vomitando.
3 –
Cena do excepcional cambaleando para a cozinha, em primeiro plano a garrafa de vinho do Porto e o refrigerante pela metade.
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1 –
Cena aberta horizontal do excepcional tomando leite (duas caixas) no bico.
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Pág 11
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1 –
Cena do excepcional sentando no chão todo babado e vomitado.
2 –
Cena do excepcional em pé olhando para o pai e a mãe.
3 –
Close na mesa da sala de jantar, com os restos da pizza e do bacalhau, a garrafa de vinho e o refrigerante.
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1 –
Cena do excepcional debaixo do chuveiro, com a cabeça baixa.
2 –
Cena do excepcional se vestindo bem.
3 –
Cena do excepcional passando perfume.
4 –
Cena do excepcional fazendo um penteado moderno no cabelo.
5 –
Cena do excepcional pegando dinheiro na carteira da mãe.
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1 –
Cena da esquina da rua Bela Cintra, com belas putas, estilo Paty.
2 –
- Sai daqui seu mongolóide!
Cena de uma puta morena tirando o excepcional.
3 –
Cena do excepcional mostrando R$400,00.
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Pág. 12
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1 –
Cena do excepcional entrando numa casa com uma garota loira.
2 –
Cena do excepcional extasiado, aparece apenas o cabelo da garota indicando que ela está fazendo uma chupeta.
3 –
Cena do excepcional comendo um cachorro-quente.
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1 –
- E aí, Marquinhos, chegou cedo bróder?
Cena do excepcional sentado debaixo de uma marquise na Augusta, pessoas passam e falam com ele.
2 –
- Nem é madrugada ainda...
Cena do excepcional imóvel.
3 –
Cena do excepcional lembrando-se do pai e da mãe, e chorando.
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1 –
Cena aberta horizontal, o excepcional está sentado no meio dos pais e assiste TV.
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Pág. 13
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1 –
“Quem estiver lendo esta carta, antes de mais nada, nos perdoe por favor.
Nós sabemos que a coisa por aqui não está nada bonita e nem um pouco agradável de se ver. Realmente, não foi fácil tomar a nossa decisão, não queremos a sua compaixão, esperamos apenas que você nos compreenda. Eu e meu marido passamos dos 70 anos. Tivemos três filhos. O Sérgio, a Fernanda e o Marco Túlio, nosso caçula. O Sérgio teve um linfoma aos 40 anos, numa época em que ninguém falava nisso. Coitado, nenhum pai, nenhuma mãe, merecem presenciar a morte tão dramática de um filho. Ele foi definhando, morrendo aos poucos, consumindo todas as energias e reservas que possuía. Quando o enterramos, Sérgio não pesava 40 quilos, era um amontoado de pele e ossos. A Naninha teve uma vida muito feliz, mas voltando do litoral, com a filha, genro e amigos, sofreu um acidente e faleceu há pouco mais de um ano.
Recentemente, eu e meu marido descobrimos que também estamos doentes. Temos pouco tempo de vida, segundo nossos médicos. Desde então, pensamos muito e discutimos bastante. Não temos mais parentes, a não ser nossos netinhos que vivem no exterior – um deles, uma jovem, está em Natal, mas não mantém contato conosco. Perdemos todos os nossos amigos. Vivemos num mundo de fantasia e solidão. Nos casamos aos 18 anos, aos 22 nos mudamos para a rua Augusta e aqui estamos até hoje. Vivemos todas as modas, frequentamos os melhores círculos artísticos e intelectuais. Tudo isso, porém, é passado e não volta mais.
Só nos restou uma coisa: o nosso querido filho Marco Túlio. Infelizmente, não podemos contar com sua ajuda e acreditar que ele cuidaria de nós dois enfermos seria uma grande ilusão. Além disso, o que seria de uma figura tão frágil depois da nossa morte? Pior do que o peso de decidir pela própria partida é ir embora e deixar uma pessoa indefesa como o Marquinhos exposta ao mundo cruel e repleto de barbaridades como o nosso. Não, não somos frio a este ponto. Marco Túlio parte com a gente.
Cuidamos de tudo, não há dívidas, pendências, nem implicações legais, tudo está resolvido. Basta ligar para o nosso advogado, o telefone está grudado no imã na porta da geladeira.
No mais, agradecemos a todos que conviveram conosco, pedimos mais uma vez a compreensão de vocês pelos nossos atos e esperamos encontrá-los algum dia no Paraíso.
Com fé e gratidão...
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Pág. 14
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1 –
Cena aberta horizontal. Imagem frontal do sofá, o velho para um lado, torto e babando; a velha para o outro, também desengonçada; e o excepcional no meio com o controle remoto na mão.
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1 –
- Pai...
Cena da mão do excepcional mexendo com o velho.
2 –
- Mãe...
Cena da mão do excepcional mexendo com a velha.
3 –
Close no rosto do excepcional, os olhos estão lacrimejando.
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1 –
Cena de mulher nua na TV.
2 –
Close no rosto do excepcional, que está feliz.
3 –
Cena da polícia na TV.
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1 –
Close no rosto do excepcional, que está triste.
2 –
Cena da praia na TV.
3 –
Close no rosto do excepcional, que está feliz.
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Pág. 15
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1 –
- “A polícia ainda procura informações sobre a tragédia desta madrugada na rua Augusta.”
Cena do Fantástico na TV.
2 –
- “Ainda não há suspeitos, apesar de a Polícia ter identificado uma importante testemunha.”
Cena de um repórter falando na TV.
3 –
- “Tem um morador da região que presenciou o ocorrido e nós o identificamos.”
Cena de um delegado falando na TV.
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1 –
Cena aberta horizontal, o excepcional está sentado no meio daquela sala imunda.
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1 –
Cena do excepcional beijando o pai.
2 –
Cena do excepcional beijando a mãe.
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1 –
Cena do excepcional pegando o resto de pizza e o refrigerante que está pela metade.
2 –
Cena do excepcional começando a comer e beber.
3 –
Cena do excepcional comendo a pizza e bebendo o refrigerante.
4 –
Cena do excepcional com a garrafa vazia na mão.
5 –
Cena do excepcional caindo de costas no chão.
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Pág. 16
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1 –
Cena aberta (página inteira) do interior da casa (sala de jantar e televisão). As luzes da polícia brilham na janela, como se estivessem na rua. Todos estão mortos. E a campainha não para de tocar.
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terça-feira, 18 de agosto de 2009
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