=============================================
Capítulo 1 – A limpeza ética
=============================================
Pág. 1
=============================================
1 –
Cena aberta da esquina das ruas Augusta e Antônio Carlos, lado par. Tem sangue esguichado por todos os lados. Faixa amarela, Polícia, Perícia, Bombeiros e curiosos. Um corpo (não é possível identificá-lo) é colocado dentro da carrocinha do IML. Funcionários da Prefeitura limpam o lugar.
----------------------------------------------------------------------------------
1 –
(O problema não é trabalhar no domingo...)
Close em recipientes de produtos químicos de limpeza.
2 –
(A questão não é quando, mas sim como...)
Close em mãos com luvas de borracha que misturam os produtos.
3 –
(Se essas coisas acontecessem quarta-feira à tarde, eu não estaria aqui.)
Cena de um velho com esfregador, balde e os aparatos de limpeza.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Quando isso acontece e de madrugada, eu quem limpo a maledicência.)
Cena aberta do velho limpando a calçada e as pessoas, uma ou outra, passando indiferentes.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Hoje o telefone tocou bem cedo. Eram 5h54.)
Close num telefone celular, simples, tocando.
2 –
(Dona Lourdes, a do turno da madrugada.)
Close num braço feminino, velho e gordo. A imagem tem o fio do telefone, uma xícara de café, revistas e esmaltes.
3 –
- Seu Vanderlei, vem logo que o negócio parece que foi feio!
Close na boca da Dona Lourdes falando ao telefone.
=============================================
Pág. 2
=============================================
1 –
(Da minha casa, na Cardeal, até o depósito, na Cardoso, são 5 minutos.)
Close na garupa de uma bicicleta carregando a marmita e uma garrafa de café.
2 –
(Do depósito até à Augusta mais 10 minutos...)
Cena o velho dentro de uma Kombi com outros funcionários da Prefeitura).
3 –
(Se me deixassem vir direto de bicicleta, chegaria mais rápido. Não deixam.)
Close da mão do velho batendo cartão.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Apesar de o caminho ser pequeno, sempre caía em pensamentos...)
Cena da rua Augusta à noite, cheia de gente e carros.
2 –
(Pensava o que poderia ter ocorrido a mais uma pobre alma.)
Cenas de assaltos, armas, violência.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Era sempre assim: uma puta que o playboy cravou-lhe balas...)
Cena uma puta sendo morta a tiros.
2 –
(Um travesti espancado até a morte...)
Close de coturnos chutando a cabeça do travesti.
3 –
(Um gay recém-saído da Lôka atropelado pelo bofe que ele deixou.)
Cena de um velho ao volante com um gay esfolado no pára-brisas.
=============================================
Pág. 3
=============================================
1 –
(Depois de 17 anos trabalhando nisso a gente se acostuma. Só criança é que me deixava desnorteado. Se eu visse uma nessas condições, logo tremia todo e lembrava da Tininha. Me cortava o coração, não conseguia dormir durante vários dias.)
Cena de um retrato antigo de família, com destaque para a filha do velho, ainda criança. No fundo, crianças mortas.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(A Prefeitura sabia da minha astúcia em fazer a limpeza...)
Cena da fachada de locais límpidos, como Bancos ($), brilhando.
2 –
(Morar perto do Centro, facilitava tudo...)
Cena da avenida Paulista.
3 –
(Pois, quanto mais distante era a tragédia...)
Cena transformação do Centro para o subúrbio.
----------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Menos havia necessidade em me deslocar.)
Cena aberta do subúrbio, favelas, ruas sujas, gatos nos postes, um corpo, pedaços de jornal, resto de comida, lixo, cachorros.
=============================================
Págs. 4 e 5
=============================================
1 –
(Com o Cidade Limpa, a história nas regiões centrais mudou. Minhas químicas eram infalíveis, ganhei mais importância, até um diploma. Só não ganhei dinheiro.)
Mosaico com diversas cenas pré e pós-Cidade Limpa, um diploma, apertos de mão e tapinhas nas costas.
=============================================
Pág. 6
=============================================
1 –
(Hoje senti uma coisa diferente...)
Close na boca do velho, a barba por fazer e o cigarro torto na boca.
2 –
(Eu conhecia sangue pelo cheiro...)
Close no nariz do velho.
3 –
(Tinha que pegá-lo ainda fresco, mas de preferência sem a pessoa lá.)
Cena de um lugar ensaguentado, mas sem a vítima.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Engraçado... sou homem de pouco estudo...)
Close das mãos enrugadas.
2 –
(De pouca ciência e discernimento...)
Cena do velho corcunda, de costas, limpando o chão.
3 –
(Mas era só chegar perto que eu sabia definir perfeitamente aquele odor.)
Cena aproximada do velho com o esfregão na mão, sentido o cheiro do lugar.
----------------------------------------------------------------------------------
1 –
(O cheiro de fósforo...)
Cena de palitos de fósforos.
2 –
(De cromo...)
Cena de produtos cromados.
3 –
(De metal...)
Cena de coisas de ferro.
4 –
(De sal...)
Cena de um saleiro.
5 –
(Às vezes mais...)
Cena de um fogo em brasa.
6 –
(Às vezes menos...)
Cena de uma fogueira branda.
--------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Dependendo da “quantidade” de cada cheiro, é que eu fazia a mistura.)
Cena aberta com todos os potes dos produtos químicos enfileirados, enquanto o velho passa o esfregão.
=============================================
Pág. 7
=============================================
1 –
(Cada história...)
Cena de um homem de 40 anos, ares de classe média, com a face horrorizada.
2 –
(Um cheiro diferente...)
Cena de uma garota de 18 anos com a face horrorizada.
3 –
(E dosagens diferentes.)
Cena de um moleque de rua com a face horrorizada.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Nesses 17 anos nunca houve falha...)
Close do esfregão deixando uma faixa branca no sangue vermelho.
2 –
(Não deixo restar um vestígio de sangue...)
Cena com um lugar totalmente branco.
3 –
(Sou bastante procurado, vivo me protegendo.)
Cena da sombra de um bandido perseguindo o velho.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Mas naquele domingo o cheiro era completamente diferente.)
Cena aberta do velho limpando o local, os outros funcionários estão coçando a cabeça como desentendidos.
============================================
Pág. 8
============================================
1 –
(Era um cheiro que lembrava o frio...)
Cena de um lugar congelado.
2 –
(Algo próximo ao perfume dos pinheiros lá do Sul...)
Cena de uma floresta de pinheiros.
3 –
(Porém, logo me dei conta de que era cheiro de arnica da serra.)
Cena da árvore de arnica.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Porque diabos aquela sangueira toda cheirava à arnica, eu não sabia.)
Cena do velho limpando o local do crime.
2 –
(Pior é que eu não sabia o que usar neste caso...)
Cena da mistura de produtos.
3 –
(Pela primeira vez fiz uma solução sem esperar pelo bom resultado.)
Cena do velho com o esfregão.
--------------------------------------------------------------------------------
1 –
- Seu Vanderlei vamos logo, já são 6h30.
Cena do supervisor falando com o velho.
2 –
- É, hoje o negócio aqui tá feio mesmo.
Cena do velho passando esfregão.
3 –
- Tô vendo, o Sr. não para de esfregar e está difícil de sair esse vermelhão!
Cena do supervisor apontando para o trabalho com descrédito.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
(Tive que pensar numa saída para que o supervisor e o inspetor não me aborrecessem mais. Mas eu sabia que assim que o sol saísse, a morrinha iria subir naquele pedaço...)
Cena do velho, misturando outros produtos com indicação de caveiras nos rótulos.
=============================================
Pág. 9
=============================================
1 –
Cena aberta do velho comendo um pastel no balcão do bar.
2 –
Cena aproximada do velho comendo o pastel.
3 –
- Você viu que loucura?
Cena do balconista lavando o copo e olhando a tv.
4 –
Cena do velho comendo o pastel (mão baixa).
5 –
Cena do velho comendo o pastel (mão alta junto à boca).
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão com o copo no balcão).
2 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão levantando o copo).
3 –
Cena do velho tomando uma cerveja (copo junto à boca).
4 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão com o copo no balcão).
5 –
- Deus me livre, não quero nem ver.
Cena do velho de cabeça baixa.
----------------------------------------------------------------------------------
1 –
Cena do velho tirando um cigarro torto do maço amassado.
2 –
- É... onde esse mundo vai parar...
Cena do balconista estendendo a mão com fogo para o velho.
3 –
Cena do velho fumando (mão na boca, trago).
4 –
Cena do velho fumando (mão no ar, solta fumaça).
5 –
Cena do velho fumando (mão na boca, trago).
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
Cena do velho pedindo uma pinga com os dedos.
2 –
Cena do velho tomando a pinga (mão levantando o copo).
3 –
Cena do velho tomando a pinga (copo junto à boca).
4 –
- Essa violência é triste...
Cena do velho batendo o copo no balcão.
5 –
- Brigado!
Cena do velho limpando a boca com o braço.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
Cena do velho saindo do bar com um braço de criança puxando a sua calça.
============================================
Pág. 10
============================================
1 –
- “Tio me dá um dinheiro, me paga um salgado, pode ser um pão com manteiga. O Sr. tem cigarro? Eu não fumo, mas levo para a minha mãe. O Sr. quer ajuda para alguma coisa? Eu tô morrendo de fome, vai...”
Cena aberta com uma criança pobre, perto de 7 anos, suja, engraxate, com sua caixa suja de sangue.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
- Ei, sua caixa está toda suja de sangue, o que aconteceu?
Cena do velho assustado.
2 –
- Fui ver se tinha dinheiro naquela sujeira hoje de madrugada...
Cena do moleque apontando com cara de traquinas.
3 –
- Tome esse pano, tem um resto de produto aí, é só passar na água...
Cena do velho tirando um pano de bolso.
---------------------------------------------------------------------------------
1 –
- E o meu trocado?
Cena do garotinho questionando.
2 –
- Não tenho, mas vai limpar a sua caixa.
Cena do velho puxando a orelha do garoto.
3 –
- Não precisa, você sabe muito bem que esse sangue não sai de jeito nenhum.
Cena do garoto com a cara enfezada.
=============================================
terça-feira, 18 de agosto de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário