terça-feira, 18 de agosto de 2009

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Capítulo 1 – A limpeza ética
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Pág. 1
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1 –
Cena aberta da esquina das ruas Augusta e Antônio Carlos, lado par. Tem sangue esguichado por todos os lados. Faixa amarela, Polícia, Perícia, Bombeiros e curiosos. Um corpo (não é possível identificá-lo) é colocado dentro da carrocinha do IML. Funcionários da Prefeitura limpam o lugar.

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1 –
(O problema não é trabalhar no domingo...)

Close em recipientes de produtos químicos de limpeza.

2 –
(A questão não é quando, mas sim como...)

Close em mãos com luvas de borracha que misturam os produtos.

3 –
(Se essas coisas acontecessem quarta-feira à tarde, eu não estaria aqui.)

Cena de um velho com esfregador, balde e os aparatos de limpeza.

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1 –
(Quando isso acontece e de madrugada, eu quem limpo a maledicência.)

Cena aberta do velho limpando a calçada e as pessoas, uma ou outra, passando indiferentes.

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1 –
(Hoje o telefone tocou bem cedo. Eram 5h54.)

Close num telefone celular, simples, tocando.

2 –
(Dona Lourdes, a do turno da madrugada.)

Close num braço feminino, velho e gordo. A imagem tem o fio do telefone, uma xícara de café, revistas e esmaltes.

3 –
- Seu Vanderlei, vem logo que o negócio parece que foi feio!

Close na boca da Dona Lourdes falando ao telefone.

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Pág. 2
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1 –
(Da minha casa, na Cardeal, até o depósito, na Cardoso, são 5 minutos.)

Close na garupa de uma bicicleta carregando a marmita e uma garrafa de café.

2 –
(Do depósito até à Augusta mais 10 minutos...)

Cena o velho dentro de uma Kombi com outros funcionários da Prefeitura).

3 –
(Se me deixassem vir direto de bicicleta, chegaria mais rápido. Não deixam.)

Close da mão do velho batendo cartão.

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1 –
(Apesar de o caminho ser pequeno, sempre caía em pensamentos...)

Cena da rua Augusta à noite, cheia de gente e carros.

2 –
(Pensava o que poderia ter ocorrido a mais uma pobre alma.)

Cenas de assaltos, armas, violência.

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1 –
(Era sempre assim: uma puta que o playboy cravou-lhe balas...)

Cena uma puta sendo morta a tiros.

2 –
(Um travesti espancado até a morte...)

Close de coturnos chutando a cabeça do travesti.

3 –
(Um gay recém-saído da Lôka atropelado pelo bofe que ele deixou.)

Cena de um velho ao volante com um gay esfolado no pára-brisas.

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Pág. 3
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1 –
(Depois de 17 anos trabalhando nisso a gente se acostuma. Só criança é que me deixava desnorteado. Se eu visse uma nessas condições, logo tremia todo e lembrava da Tininha. Me cortava o coração, não conseguia dormir durante vários dias.)

Cena de um retrato antigo de família, com destaque para a filha do velho, ainda criança. No fundo, crianças mortas.

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1 –
(A Prefeitura sabia da minha astúcia em fazer a limpeza...)

Cena da fachada de locais límpidos, como Bancos ($), brilhando.

2 –
(Morar perto do Centro, facilitava tudo...)

Cena da avenida Paulista.

3 –
(Pois, quanto mais distante era a tragédia...)

Cena transformação do Centro para o subúrbio.

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1 –
(Menos havia necessidade em me deslocar.)

Cena aberta do subúrbio, favelas, ruas sujas, gatos nos postes, um corpo, pedaços de jornal, resto de comida, lixo, cachorros.

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Págs. 4 e 5
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1 –
(Com o Cidade Limpa, a história nas regiões centrais mudou. Minhas químicas eram infalíveis, ganhei mais importância, até um diploma. Só não ganhei dinheiro.)

Mosaico com diversas cenas pré e pós-Cidade Limpa, um diploma, apertos de mão e tapinhas nas costas.

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Pág. 6
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1 –
(Hoje senti uma coisa diferente...)

Close na boca do velho, a barba por fazer e o cigarro torto na boca.

2 –
(Eu conhecia sangue pelo cheiro...)

Close no nariz do velho.

3 –
(Tinha que pegá-lo ainda fresco, mas de preferência sem a pessoa lá.)

Cena de um lugar ensaguentado, mas sem a vítima.

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1 –
(Engraçado... sou homem de pouco estudo...)

Close das mãos enrugadas.

2 –
(De pouca ciência e discernimento...)

Cena do velho corcunda, de costas, limpando o chão.

3 –
(Mas era só chegar perto que eu sabia definir perfeitamente aquele odor.)

Cena aproximada do velho com o esfregão na mão, sentido o cheiro do lugar.

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1 –
(O cheiro de fósforo...)

Cena de palitos de fósforos.

2 –
(De cromo...)

Cena de produtos cromados.

3 –
(De metal...)

Cena de coisas de ferro.

4 –
(De sal...)

Cena de um saleiro.

5 –
(Às vezes mais...)

Cena de um fogo em brasa.

6 –
(Às vezes menos...)

Cena de uma fogueira branda.

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1 –
(Dependendo da “quantidade” de cada cheiro, é que eu fazia a mistura.)

Cena aberta com todos os potes dos produtos químicos enfileirados, enquanto o velho passa o esfregão.

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Pág. 7
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1 –
(Cada história...)

Cena de um homem de 40 anos, ares de classe média, com a face horrorizada.

2 –
(Um cheiro diferente...)

Cena de uma garota de 18 anos com a face horrorizada.

3 –
(E dosagens diferentes.)

Cena de um moleque de rua com a face horrorizada.

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1 –
(Nesses 17 anos nunca houve falha...)

Close do esfregão deixando uma faixa branca no sangue vermelho.

2 –
(Não deixo restar um vestígio de sangue...)

Cena com um lugar totalmente branco.

3 –
(Sou bastante procurado, vivo me protegendo.)

Cena da sombra de um bandido perseguindo o velho.

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1 –
(Mas naquele domingo o cheiro era completamente diferente.)

Cena aberta do velho limpando o local, os outros funcionários estão coçando a cabeça como desentendidos.

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Pág. 8
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1 –
(Era um cheiro que lembrava o frio...)

Cena de um lugar congelado.

2 –
(Algo próximo ao perfume dos pinheiros lá do Sul...)

Cena de uma floresta de pinheiros.

3 –
(Porém, logo me dei conta de que era cheiro de arnica da serra.)

Cena da árvore de arnica.

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1 –
(Porque diabos aquela sangueira toda cheirava à arnica, eu não sabia.)

Cena do velho limpando o local do crime.

2 –
(Pior é que eu não sabia o que usar neste caso...)

Cena da mistura de produtos.

3 –
(Pela primeira vez fiz uma solução sem esperar pelo bom resultado.)

Cena do velho com o esfregão.

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1 –
- Seu Vanderlei vamos logo, já são 6h30.

Cena do supervisor falando com o velho.

2 –
- É, hoje o negócio aqui tá feio mesmo.

Cena do velho passando esfregão.

3 –
- Tô vendo, o Sr. não para de esfregar e está difícil de sair esse vermelhão!

Cena do supervisor apontando para o trabalho com descrédito.

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1 –
(Tive que pensar numa saída para que o supervisor e o inspetor não me aborrecessem mais. Mas eu sabia que assim que o sol saísse, a morrinha iria subir naquele pedaço...)

Cena do velho, misturando outros produtos com indicação de caveiras nos rótulos.

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Pág. 9
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1 –
Cena aberta do velho comendo um pastel no balcão do bar.

2 –
Cena aproximada do velho comendo o pastel.

3 –
- Você viu que loucura?

Cena do balconista lavando o copo e olhando a tv.

4 –
Cena do velho comendo o pastel (mão baixa).

5 –
Cena do velho comendo o pastel (mão alta junto à boca).

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1 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão com o copo no balcão).

2 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão levantando o copo).

3 –
Cena do velho tomando uma cerveja (copo junto à boca).

4 –
Cena do velho tomando uma cerveja (mão com o copo no balcão).

5 –
- Deus me livre, não quero nem ver.

Cena do velho de cabeça baixa.

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1 –
Cena do velho tirando um cigarro torto do maço amassado.

2 –
- É... onde esse mundo vai parar...

Cena do balconista estendendo a mão com fogo para o velho.

3 –
Cena do velho fumando (mão na boca, trago).

4 –
Cena do velho fumando (mão no ar, solta fumaça).

5 –
Cena do velho fumando (mão na boca, trago).

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1 –
Cena do velho pedindo uma pinga com os dedos.

2 –
Cena do velho tomando a pinga (mão levantando o copo).

3 –
Cena do velho tomando a pinga (copo junto à boca).

4 –
- Essa violência é triste...

Cena do velho batendo o copo no balcão.

5 –
- Brigado!

Cena do velho limpando a boca com o braço.

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1 –
Cena do velho saindo do bar com um braço de criança puxando a sua calça.

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Pág. 10
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1 –
- “Tio me dá um dinheiro, me paga um salgado, pode ser um pão com manteiga. O Sr. tem cigarro? Eu não fumo, mas levo para a minha mãe. O Sr. quer ajuda para alguma coisa? Eu tô morrendo de fome, vai...”

Cena aberta com uma criança pobre, perto de 7 anos, suja, engraxate, com sua caixa suja de sangue.

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1 –
- Ei, sua caixa está toda suja de sangue, o que aconteceu?

Cena do velho assustado.

2 –
- Fui ver se tinha dinheiro naquela sujeira hoje de madrugada...

Cena do moleque apontando com cara de traquinas.

3 –
- Tome esse pano, tem um resto de produto aí, é só passar na água...

Cena do velho tirando um pano de bolso.

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1 –
- E o meu trocado?

Cena do garotinho questionando.

2 –
- Não tenho, mas vai limpar a sua caixa.

Cena do velho puxando a orelha do garoto.

3 –
- Não precisa, você sabe muito bem que esse sangue não sai de jeito nenhum.

Cena do garoto com a cara enfezada.

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